O
poder de polícia das guardas municipais
Por
Ricardo Antonio Andreucci – 07/07/2016
Insuflados por recentes episódios envolvendo a
morte de uma criança causada por um integrante da Guarda Civil Metropolitana de
São Paulo, surgiram interessantes debates acerca do poder de polícia das
guardas municipais, muitos deles apartando-se do foco central da questão,
deixando-se levar por equivocadas interpretações legais de cunho
político-partidário.
De início, cumpre salientar que o poder de polícia
nada mais é que uma atividade estatal que limita o exercício dos direitos
individuais em prol do interesse coletivo.
Nesse sentido é o preciso conceito legal estampado
no art. 78 do Código Tributário Nacional: “Art. 78. Considera-se poder de
polícia a atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando
direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato,
em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos
costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades
econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à
tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais
ou coletivos”.
No mesmo sentido: “Poder de Policia é a faculdade
que dispõe a Administração Pública para conter os abusos do poder individual.
Segundo ele o Estado detém a atividade dos particulares que se revelar
contrária, nociva ou inconveniente ao bem-estar social e a segurança
nacional.” (MEIRELLES, H. L. Direito administrativo brasileiro. 29
ed. São Paulo: Malheiros, 2004).
Logo, a atividade do Estado deve condicionar a
liberdade e a propriedade de acordo com os interesses coletivos, segundo o
festejado Celso Antonio Bandeira de Melo, que, inclusive, bem pontua a
diferença entre polícia administrativa e polícia judiciária. Nas palavras do
citado jurista: “O que efetivamente aparta policia administrativa de policia
judiciária é que a primeira se predispõe unicamente a impedir ou paralisar
atividades antissociais enquanto a segunda se preordena à responsabilização dos
violadores da ordem jurídica”. (BANDEIRA DE M., CELSO, A. Curso de direito
administrativo. 29 Ed. São Paulo: Malheiros, 2011).
Mas a pergunta central do debate é a seguinte: as
guardas municipais são “polícia”?
O art. 144 da Constituição Federal, ao dispor que a
segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos,
devendo ser exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das
pessoas e do patrimônio, enumera os órgãos que a compõe (polícia federal,
policias civis, polícias militares etc), mencionando apenas no §8º a
possibilidade de os municípios constituírem guardas municipais destinadas à
proteção de seus bens, serviços e instalações, “conforme dispuser a lei” (grifo
nosso).
Nesse sentido, a Lei nº 13.022/14, denominada
Estatuto Geral das Guardas Municipais, disciplinando o mencionado §8º, dispõe
expressamente no art. 2º a função das guardas municipais de proteção municipal
preventiva, ressalvadas, por óbvio, as competências da União, dos Estados e do
Distrito Federal. No art. 3º, a lei enumera os princípios mínimos de atuação
das guardas municipais, merecendo destaque a “proteção dos direitos humanos
fundamentais” e o “patrulhamento preventivo”, inclusive com o “uso progressivo
da força”.
Como competências específicas das guardas
municipais, o art. 5º estabelece, dentre outras, “prevenir e inibir, pela
presença e vigilância, bem como coibir, infrações penais ou administrativas e
atos infracionais que atentem contra os bens, serviços e instalações
municipais”, “atuar, preventiva e permanentemente, no território do Município,
para a proteção sistêmica da população que utiliza os bens, serviços e
instalações municipais”, “colaborar com a pacificação de conflitos que seus
integrantes presenciarem, atentando para o respeito aos direitos fundamentais
das pessoas” e também “garantir o atendimento de ocorrências emergenciais, ou
prestá-lo direta e imediatamente quando deparar-se com elas”.
Percebe-se, portanto, que as guardas municipais
integram o rol de instrumentos utilizados pelo Estado para efetivar as funções
da administração pública, para a preservação do bem comum, até porque, a bem da
verdade, todo funcionário público investido de sua competência legal atua em
nome do Estado não sendo o poder de polícia exclusivamente da “polícia”.
Nesse aspecto, inclusive, é lapidar a disposição
constante do parágrafo único do já citado art. 78 do Código Tributário
Nacional: “Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando
desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com
observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como
discricionária, sem abuso ou desvio de poder.”
Sim, o poder de polícia deve ser exercido “nos
limites da lei aplicável” e “sem abuso ou desvio de poder”.
Por acaso somente as guardas civis devem seguir e
lei e atuar sem abuso de poder? Essa regra não se aplica também a todas as
forças policiais (polícia federal, polícias civis e polícias militares)?
Quantos casos de abuso e desvio de poder se vêm
todos os dias por parte de alguns integrantes das polícias civis e das polícias
militares, sem que toda a instituição ou corporação seja rotulada e tenha
tolhidas suas atribuições legais!
Então, não se deve penalizar toda uma instituição
pelos erros de alguns de seus integrantes (que devem ser punidos), e isso se
aplica a todos os níveis de poder do Estado.
Entretanto, a municipalidade de São Paulo, por meio
de sua Secretaria Municipal de Segurança Urbana, atendendo demagogicamente ao
clamor de uma minoria de críticos desinformados, baixou a Portaria 38, de 1º de
julho de 2016, vedando expressamente à Guarda Civil Metropolitana de São Paulo
“o uso de arma de fogo contra veículo em atitudes suspeitas”, bem como a
“perseguição a veículos em atitudes suspeitas”.
Essa equivocada e demagógica portaria estabelece o
óbvio: a Guarda Civil Metropolitana tem que agir de acordo com a lei. Não podem
seus agentes atirar simplesmente porque o veículo é suspeito e nem persegui-lo
sem fundadas razões que indiquem a ocorrência de um delito em situação de
flagrância.
Essa malfadada portaria não tem o condão de revogar
as disposições da Lei nº 13.022/14 e nem tampouco as disposições relativas à
prisão previstas no Código de Processo Penal.
Algumas questões, portanto, devem ficar bem claras:
O guarda municipal pode prender alguém em flagrante
delito? Sim, nos termos do disposto no art. 301, primeira parte, do CPP
(flagrante facultativo), já que o flagrante compulsório é privativo das
“autoridades policiais e seus agentes”.
O guarda municipal pode perseguir o criminoso? Sim,
nos termos do que dispõe o art. 302, III, c.c. art. 290, ambos do CPP.
O guarda municipal pode utilizar a força? Sim, a
indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso, de
acordo com o art. 284 do CPP.
O guarda municipal pode utilizar arma de fogo ou
atirar em alguém? Sim, desde que o faça em legítima defesa própria ou de
terceiros.
Conclui-se, pois, que, embora não sendo “polícia”,
as guardas municipais desenvolvem relevantes funções de preservação da ordem
pública e da segurança das pessoas e do patrimônio, contribuindo de maneira
considerável para a preservação da paz social, valendo ressaltar que, em vários
países do mundo, a concepção de segurança pública parte de uma importante
vertente municipalista, protegendo as pessoas e também os direitos e garantias
fundamentais da comunidade, sem desconsiderar, obviamente, a relevância das
demais forças policiais.
Sobre o autor:
Ricardo Antonio Andreucci é Procurador de Justiça
Criminal do Ministério Público de São Paulo. Doutor e Mestre em Direito.
Pós-doutor pela Universidade Federal de Messina – Itália. Coordenador
pedagógico do COMPLEXO DE ENSINO ANDREUCCI. Professor universitário de cursos
preparatórios para ingresso nas Carreiras Jurídicas e OAB. Autor de diversas
obras publicadas pela Editora Saraiva. Articulista e palestrante.
Fonte: http://emporiododireito.com.br/guardas-municipais/
2 Comentários:
Excelente artigo.
Excelente artigo.
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